Frei Gilvander faz um relato especial do significado desta prisão para a justiça no campo.
Por Frei Gilvander Do IHU Online (Via MST)
Segundo vários meios de comunicação[1], Adriano Chafik Luedy, mandante e assassino confesso do massacre de Felisburgo, foi preso na tarde da última quinta-feira (14), em Salvador, Bahia, pela Polícia Civil do estado de Minas Gerais. Em 2013, após 9 anos do massacre de Felisburgo, Adriano Chafik foi julgado e condenado no Fórum Lafaiete, em Belo Horizonte, a 115 anos de prisão, mas estava foragido. Se fosse um pobre, teria sido preso logo após o massacre de cinco camponeses Sem Terra.
Ficará preso quanto tempo? Por amor à verdade, aos camponeses Sem Terra, ao MST e para que não seja esquecido e nem repetido o massacre de Felisburgo, socializo, abaixo, o que coloquei na minha tese de doutorado na FAE/UFMG sobre a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana.
Dia 20 de novembro de 2004, dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, por volta das 11h15, em um dia chuvoso, 17 jagunços, liderados pelo fazendeiro e empresário Adriano Chafik Luedy, invadiram o Acampamento Terra Prometida, do MST, no município de Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha, MG. Renderam um Sem Terra que estava na guarita do acampamento e, com revólver encostado na sua orelha, o obrigaram a soltar um foguete, que era a senha para reunir todo o povo do acampamento em caso de ameaça ou de necessidade de se reunir com rapidez. O povo começou a se reunir. Adriano Chafik, visto por muitos no local, liderava a operação, perguntando “Cadê a Eni e o Jorge?”, e ordenando “Podem atirar e matar…”. O bando de jagunços – uns encapuzados, outros não – iniciou os disparos. Dentro de poucos minutos assassinaram cinco Sem Terra. Todos os tiros foram à queima roupa. Feriram mais de 12 pessoas, incendiaram com gasolina dezenas de barracos de lona preta, a barraca da Escola, a barraca de alimentos, a barraca da biblioteca, barracos da Maria Gomes dos Santos (Eni) e do Jorge Rodrigues Pereira. Uma criança de doze anos levou um tiro próximo ao olho. Puseram gado nas lavouras dos Sem Terra. Muitos trabalhadores do acampamento ficaram, desde então, amedrontados e portadores de alguma doença, física ou mental, como consequência daquele crime.[2] Assassinaram covardemente cinco Sem Terra do MST: Iraguiar Ferreira da Silva, 23 anos; Miguel José dos Santos, 56 anos; Francisco Nascimento Rocha, 62 anos; Juvenal Jorge da Silva, 65 anos; Joaquim José dos Santos, 65 anos. A perícia feita atestou que todos os tiros foram à queima roupa. Cada um dos camponeses assassinados recebeu diversos tiros; um levou quatro tiros no peito, outro levou treze. Feriram outras vinte pessoas Sem Terra.
Atearam fogo no acampamento, reduzindo a cinzas 65 barracas de lona preta, inclusive a barraca da escola, onde 51 adultos faziam, todas as noites, o curso de alfabetização. O Sr. Miguel José dos Santos, por exemplo, terminaria a 4a série primária em 2005. Pendurado no corpo do Sr. Joaquim José dos Santos, irmão de Miguel, foram encontrados dois embornais, um com milho e outro com feijão. Ele tinha semeado durante a manhã toda. Veio almoçar, participou da reunião da coordenação do acampamento, mas, antes de voltar para continuar plantando, foi barbaramente assassinado. Sr. Joaquim, um semeador de sementes não transgênicas, foi semeado na terra prometida. Os mártires do Acampamento Terra Prometida não foram sepultados, foram plantados.
Escondidas no meio do mato, a polícia encontrou treze armas usadas no massacre de Felisburgo, inclusive armas de grosso calibre. Policiais encontraram uma nota fiscal da compra das armas e mais munição na sede da Fazenda Nova Alegria, que era do fazendeiro Adriano Chafik, réu confesso, julgado e condenado a 115 anos de prisão, mas ainda com liberdade de ir e vir, sob a proteção de recursos e manobras jurídicas possíveis somente a quem tem muito dinheiro. O exame de balística comprovou que as armas apreendidas foram utilizadas na chacina. Dos 17 acusados de participação nesse massacre, somente dois jagunços estão presos. Como todas as chacinas do Brasil, o crime foi premeditado e anunciado.
Autoridades federais e estaduais visitaram o local e, diante dos camponeses sobreviventes, prometeram prisão imediata dos jagunços e do mandante, julgamento e assentamento das famílias, mas, como no Brasil há punição em demasia para os pobres e impunidade para integrantes da classe dominante, as promessas ficaram por dez anos sem cumprimento.
Os camponeses Sem Terra ocuparam a Fazenda Nova Alegria dia 1º de maio de 2002. Foram ameaçados durante mais de dois anos. Inúmeros Boletins de Ocorrência foram registrados na delegacia de Felisburgo. A CPT, em 24 de setembro de 2004, fez uma representação à Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais, alertando que oito jagunços tinham invadido o acampamento e há dois dias desfilavam ameaças aos camponeses acampados. Autoridades locais ouviram, mas foram omissas ou cúmplices. Infelizmente, não tomaram medidas para evitar o massacre. Conivência e cumplicidade do Estado.
Parte da Fazenda Nova Alegria foi declarada judicialmente como terra devoluta. Em uma Ação Discriminatória, processo 0024.03.025.037-7, da Vara de Conflitos Agrários, o estado de Minas Gerais pediu a declaração como terra devoluta de uma área de 1.262,00 hectares da Fazenda. Da área total do imóvel, 708,38 hectares foram reconhecidos como área devoluta na própria certidão imobiliária. Em decisão datada de 28 de fevereiro de 2005, o então juiz da Vara de Conflitos Agrários, Luiz Renato Dresch, deferiu tutela antecipatória ao estado de Minas Gerais devolvendo-lhe a posse de parte da Fazenda Nova Alegria, em uma extensão de 568 hectares com a indicação de ser destacada a área do imóvel todo a partir de estudo a ser apresentado pelo Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais (ITER).
A Constituição Estadual de Minas Gerais, no art. 10, inciso XI, afirma que compete ao estado de Minas Gerais “instituir um plano de aproveitamento e destinação de terra pública e devoluta, compatibilizando-o com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”.[3] A Lei Estadual 11.020/93 disciplina o procedimento e o destino a ser dado às terras devolutas no Estado. A Lei 6.383/73 disciplina o processo discriminatório. Logo, não é por falta de leis que as terras devolutas em Minas Gerais continuam presas por empresas eucaliptadoras, sem serem resgatadas e destinadas à reforma agrária.
Para superar os conflitos agrários e estabelecer a paz, como fruto da justiça, visando “promover o bem-estar do homem que vive do trabalho da terra e fixá-lo no campo”, conforme prescreve o artigo 5º da Lei Estadual 11.020/93, foi necessário restituir, na forma de antecipação de tutela ao estado de Minas Gerais, aquela porção de terras reconhecidamente devolutas. Em decisão de 1ª instância, o poder judiciário reconheceu 515 hectares da Fazenda Nova Alegria como sendo terras devolutas.
Como fruto de um longo e intenso trabalho coletivo, com a participação do Setor de Direitos Humanos do MST, da Procuradoria da área de Conflitos Agrários do Ministério Público de Minas Gerais e com muita pressão social foi conquistado o desaforamento do julgamento de quatro jagunços – Milton, Bila (que já morreu), Francisco e Washington – para Belo Horizonte, além do mandante Adriano Chafik. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais aceitou o desaforamento do julgamento de todos os acusados do massacre. Depois de quase nove anos de clamor por justiça, após ser marcado e adiado várias vezes, o julgamento do mandante Adriano Chafik aconteceu dias 10 e 11 de outubro de 2013, na capital mineira, longe da pressão dos latifundiários da região de Felisburgo. Chafik foi condenado a 115 anos de prisão, mas não foi preso e aguarda em liberdade o julgamento de intermináveis recursos jurídicos de seus advogados. Os advogados do fazendeiro Adriano Chafik fizeram inúmeras manobras protelatórias para evitar a realização do julgamento.
Após o massacre, os Sem Terra do MST do Acampamento Terra Prometida velaram e sepultaram os cinco companheiros assassinados. Depois voltaram e reconstruíram o Acampamento. As 42 famílias sobreviventes do massacre ouviram zombaria de muita gente que dizia à exaustão: “Não falamos que vocês não iam conseguir nada? Cadê a desapropriação? O tempo está passando e nada. Vocês são bobos ao insistir nesta luta. O Adriano vai vencer vocês!” (JORGE RODRIGUES PEREIRA, Sem Terra sobrevivente do Assentamento Terra Prometida, em entrevista dia 20/10/2012).[4]
Marcado para morrer, o militante Sem Terra Jorge Rodrigues Pereira conseguiu escapar do massacre e, fugindo mato adentro, avisou via telefone os companheiros de Jequitinhonha e de Belo Horizonte. O decreto de desapropriação da Fazenda Nova Alegria fez mudar várias circunstâncias. Até o povo da cidade comemorou a desapropriação soltando foguetes. Muitos parabenizaram os Sem Terra dizendo: “Eu não sabia que o MST tinha tanta força! É merecida a conquista de vocês!” (FRANKLIN CANGUÇU, vice-prefeito de Felisburgo, em abril de 2013). Uma das lideranças do Assentamento Terra Prometida reconhece que os Sem Terra estão conquistando respeito: “Estão nos respeitando mais!” (MARIA GOMES DOS SANTOS, Sem Terra assentada no PA Terra Prometida, em entrevista, dia 20/10/2013).
Os camponeses do PA Terra Prometida seguem lutando. A produção no Assentamento está crescendo. As famílias assentadas produzem feijão, milho, mandioca, hortaliças, porco, galinha, gado, etc. Além de produzirem para o próprio consumo, abastecem a feira da cidade de Felisburgo, aos sábados. A prefeitura já colocou um ônibus para buscar as famílias Sem Terra, com seus produtos, para a feira da cidade. Estão com projetos para ampliar a produção e abastecer feiras de cidades vizinhas também. “O Assentamento Terra Prometida está produzindo cerca de 80% de verduras e legumes que abastecem a Feira de Felisburgo aos sábados. Produzem muito feijão também” (FRANKLIN CANGUÇU, vice-prefeito do município de Felisburgo, em entrevista dia 20/10/2013).
Após muitos anos de luta obstinada do MST e de tantos apoiadores, após serem mortos na luta pela terra cinco trabalhadores Sem Terra e do sofrimento dos que sobreviveram todo esse tempo sob constantes ameaças naquela terra, festejamos a conquista do decreto de desapropriação da Fazenda Nova Alegria assinado pelo presidente Lula. Mas a Justiça Federal, em uma decisão injusta e lamentável, aceitou questionamento judicial impetrado pelo fazendeiro Adriano Chafik e impugnou o decreto. Com isso, a insegurança retornou ao pré-assentamento. Mas a luta segue.
Dia 21 de novembro de 2009, no município de Felisburgo, Vale do Jequitinhonha, MG, celebramos a memória dos cinco anos do Massacre de Felisburgo. Na parte da manhã, houve marcha do MST e de representantes de Pastorais Sociais e de Movimentos Populares. Centenas de militantes marcharam por várias ruas da cidade.
Chegamos ao cemitério da cidade de Felisburgo onde estão sepultados os cinco Sem Terra de Felisburgo e foi feita uma celebração recordando-os. Foi muito comovente estar lá no cemitério, onde uma grande inscrição diz: “Aqui foram sepultados os Sem Terra Francisco, Iraguiar, Manoel, Joaquim e Miguel, covardemente assassinados a mando do fazendeiro Adriano Chafik, dia 20 de novembro de 2004. Eles tombaram, mas o sangue deles circula nas nossas artérias e nós seguiremos lutando por reforma agrária, por justiça social e dignidade. Essa era a luta deles e é nossa luta” (INSCRIÇÃO NOS TÚMULOS DOS CINCO SEM TERRA DO MASSACRE DE FELISBURGO, no cemitério da cidade de Felisburgo, MG).
A emoção tomou conta de todas/todos as/os presentes. Muitas pessoas choraram. Mais uma vez, uma espada de dor atravessou o coração das viúvas e dos sobreviventes do massacre de Felisburgo. Uma criança Sem Terrinha do PA Terra Prometida, de 11 anos, em lágrimas, desabafou: “Todos os dias, sinto uma grande dor no coração, pois perdi meu pai [Sr. Joaquim], perdi meu tio [Sr. Miguel] e perdi meu cunhado [Iraguiar]. Todos, nesse covarde massacre. Eu só peço justiça!” (GRAZIELE JOSÉ DOS SANTOS, dia 20/11/2009). Eis um sinal da dor causada pelo latifúndio, pelo coronelismo e por um Estado que, na prática, é “comitê da classe dominante”, cúmplice da agressão aos direitos humanos.
Na parte da tarde, experimentamos que os cinco Mártires de Felisburgo estão presentes na luta pela terra, vivos nos Sem Terra do MST e em tantos que se somam à luta pela terra. Na entrada da ex-fazenda havia uma placa com a inscrição “Fazenda Nova Alegria”, que foi derrubada e no lugar foi colocada uma faixa com a inscrição “Assentamento Terra Prometida”. O curral onde manejavam o gado abrigou a festa da conquista da fazenda, com churrasco e forró. “Onde boi berrava, agora nós fazemos festa”, comemorava Jorge Rodrigues, Sem Terra da coordenação do Assentamento Terra Prometida. Enfim, custou sangue, mas a Fazenda Nova Alegria foi conquistada. Atualmente, depois de muitas batalhas, está oficializado o PA Terra Prometida, que ancora a utopia cravada no chão da história de construir processualmente na luta e “na raça” uma sociedade justa com justiça agrária.
Belo Horizonte, MG, noite de 14/12/2017.
Obs.: Eis, abaixo, links de vídeos sobre o Massacre de Felisburgo, vídeos que ilustram o texto, acima. Existem dezenas de vídeos sobre o Massacre de Felisburgo. Eis, abaixo, 8 vídeos denúncias que clamam por justiça sobre o massacre de Felisburgo.
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
Notas:
[1] Conforme notícia disponível aqui.
[2] Para maiores informações e detalhes sobre o Massacre de Felisburgo, cf. MOREIRA, Gilvander Luís. Massacre de Felisburgo: o que não pode ser esquecido, publicado no portal Correio da Cidadania, no link, acesso em 05/9/2015, às 15h39.
[3] Disponível aqui, acesso em 09/11/2013 às 23h35.
[4] Cf. também depoimento de Jorge Rodrigues em Encontro para resgate da memória do Massacre de Felisburgo, em Belo Horizonte, dia 20/10/2012, disponível aqui, acesso em 31/7/2016 às 23h37.
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